Sabe qual é a sensibilidade olfativa humana para o TCA, o famigerado 2,4,6- tricloroanisol, bouchonné ou “cheiro de rolha”, um dos defeitos do vinho? Algumas partes por trilhão.
A sensibilidade que temos para o cheiro de chuva é aproximadamente a mesma, menos de cinco partes por trilhão. Quem não gosta daquele cheiro de terra molhada que vem com a chuva após um período de seca no verão? Alguns sugerem que nosso apreço por esse odor é herança da época em que nossos ancestrais dependiam da chuva para suas plantações e, portanto, para sua sobrevivência.
Esse cheiro tem um nome: petricor (do grego “petri”, ou relacionado a pedras, e “icor”, o fluido que correria pelas veias dos deuses do Olimpo), palavra cunhada pelos pesquisadores australianos Isabel Bear e Dick Thomas em março de 1964, que descreveram o petricor como “cheiro de chuva em terra seca”.[1] [2]
Seu odor é uma combinação de compostos químicos aromáticos, dentre os quais o principal é a geosmina, juntamente com óleos vegetais voláteis. Um grupo de bactérias, os actinomicetos, são microrganismos encontrados no solo em zonas urbanas, rurais e ambientes marinhos. Seu trabalho é transformar matéria orgânica morta ou em decomposição em compostos químicos simples, tais como nutrientes para o desenvolvimento de plantas.
Quando morrem, os actinomicetos secretam um tipo de álcool, a geosmina,[3] de complexa estrutura química (trans-1,10-dimetil-trans-9-decalol). A geosmina infiltra-se na terra ou noutros solos.
Se a região ficou sem chuva durante vários dias, a atividade dos actinomicetos diminui. Logo antes de uma chuva, porém, o ar fica mais úmido e o solo começa a umedecer. Este processo acelera a atividade das actinobactérias, que formam mais geosmina.
Quando a chuva cai sobre superfícies porosas, as gotas respingam e lançam ao ar pequenas partículas, os aerossóis. Em 2015, cientistas do MIT usaram câmeras ultrarrápidas para documentar como esse cheiro se espalha pelo ar. Foram feitos cerca de 600 experimentos sobre 28 superfícies diferentes, inclusive materiais de engenharia e amostras de solos. As gotas mais lentas tendem a produzir mais aerossóis, o que explica porque o petricor é mais comum após chuvas leves.[4]
A geosmina é lançada ao ar juntamente com a poeira, sendo levada pelo vento para a vizinhança, contribuindo para o cheiro do petricor. [5] Este serve de alerta para as pessoas, indicando que a chuva está chegando, e passa quando o solo seca.
Em 2005,[6] um grupo de enólogos demonstrou que a presença desse odor em vinhos é fruto da ação complementar entre a geosmina e dois fungos, Botrytis Cinerea (que os estudiosos do vinho conhecem melhor como a responsável pela “podridão nobre” dos vinhos doces de Sauternes) e Penicillium Expansum, afetando os cachos de uvas.
Curiosamente, a geosmina faz parte do aroma da beterraba, bem como da água potável contaminada por ela. Peixes como carpas e bagres também apresentam esse cheiro, que na culinária pode ser reduzido com o uso de vinagre: por ser ácido, este quebra a substância e diminui seu efeito aromático. Contudo, em vinhos – tanto brancos quanto tintos – a geosmina aporta um cheiro desagradável de nabo, lama ou terra, com um toque vegetal (o que ajuda a distingui-lo do TCA), sugerindo que o vinho foi feito com uvas podres. Um dos autores do estudo de 2005, La Guerche, diz que “dois a cinco cachos contaminados em cem são suficientes para arruinar o vinho”.[7]
Vinhos produzidos com essas uvas mas amadurecidos longamente em barril quebram a substância (mais de dois anos, no caso da Pinot Noir), mas vinhos vendidos en primeur ou de consumo mais imediato (como Beaujolais, com vários vinhos afetados por geosmina nas safras de 2000 e 2002), exibem-na. Nessas safras, alguns produtores de Beaujolais usaram leite, óleo ou carvão para eliminar o cheiro da geosmina. Embora fossem aditivos ilegais, o órgão francês responsável “fez que não viu” para não prejudicar os produtores.
Um artigo publicado em 2014 na revista Food Chemistry por autores italianos[8] avaliou a eficiência de sete tratamentos (carvão ativado, bentonita, PVPP ou polivinilpolipirrolidona, paredes celulares de leveduras, caseinato de potássio, zeólita e óleo de semente de uva) para remover a geosmina de vinhos brancos e tintos. A conclusão foi que o único tratamento capaz de reduzir a presença aromática da geosmina (em cerca de 82%) foi o óleo de semente de uva. Contudo, como efeito colateral, todos os tratamentos eficientes reduziram também os compostos aromáticos voláteis, como aqueles responsáveis pelas notas frutadas dos vinhos.
Assim, melhor mesmo é deixar para apreciar a geosmina numa caminhada pelo campo após a chuva…
[1] https://en.wikipedia.org/wiki/Petrichor, consultada em 8/12/2020.
[2] Há uma vinícola na Califórnia chamada Petrichor Winery.
[3] Borges, José Luiz. Degustação de vinhos (p. 41). WMF Martins Fontes. Edição do Kindle.
[4] https://en.wikipedia.org/wiki/Petrichor.
[5] Parr, Rajat. The Sommelier’s Atlas of Taste (p. 23). Potter/Ten Speed/Harmony/Rodale. Edição do Kindle.
[6] La Guerche, S., Chamont, S., Blancard, D. et al. Origin of (−)-Geosmin on Grapes: On the Complementary Action of Two Fungi, Botrytis Cinerea and Penicillium Expansum. Antonie Van Leeuwenhoek 88, 131–139 (2005). https://doi.org/10.1007/s10482-005-3872-4
[7] https://www.decanter.com/wine-news/bordeaux-boffin-solves-geosmin-conundrum-98896
[8] Maria Tiziana Lisanti, Angelita Gambuti, Alessandro Genovese, Paola Piombino, Luigi Moio, Earthy off-flavour in wine: Evaluation of remedial treatments for geosmin contamination, Food Chemistry, Volume 154, 2014, Pages 171-178, ISSN 0308-8146, https://doi.org/10.1016/j.foodchem.2013.12.100.