O assunto PREMOX (ou POX, originado de “premature oxidation”) é atual, instigante, envolveu vinhos brancos de denominações famosas e paradigmáticas, e por isso vem sendo remexido por grandes nomes do jornalismo e da ciência do vinho.
Eu, no caso, consultei artigos de Clive Coates (2013) e Jancis Robinson (2015) para o lado lúdico e informativo e artigos de revistas de Enologia pertinentes, um “report” de Dennis Dubourdieu visando a abordagem técnico-conceitual e enfim, o Tratado de Enologia (do qual Dubourdieu é um coautor) e o livro “Les grands vins sans sulfite”, do consultor alsaciano Arnaud Immelé (que detalha alguns protocolos específicos de vinificação de vinhos brancos) para uma revisão mais acadêmica, completando três diferentes camadas hermenêuticas, para tentar fugir da superficialidade de retransmitir uma mensagem e assim criar um ambiente efervescente para as inquietações dos grandes apaixonados que somos pelos vinhos brancos!
Afinal, ao menos para mim que tenho que contar bem o dinheiro gasto em vinhos, a informação é um alter-ego da prudência, virtude tão nobre quanto um grande Chardonnay da Borgonha, centro nervoso da discussão.
CONCEITOS
Como dizemos que um vinho envelhece bem? Uma garrafa envelhece bem se tem a capacidade de desenvolver um caráter único de distinção ao longo do tempo, ou seja, se aparenta à degustação ser mais jovem do que realmente é e sobretudo, se parece ter se tornado mais interessante do que quando aberta alguns anos antes.
Essa é uma das razões primordiais pela qual um vinho caro é necessariamente um vinho que suporta e merece um período de desenvolvimento longo em garrafa. E o que dizer da decepção de se adquirir uma garrafa que deveria ostentar estes predicados, porém se mostra exaurida num espaço curto de tempo?
Mas há uma “pegadinha” aqui: existe uma diferença entre uma oxidação prematura (sensibilidade anormal ao oxigênio) e o envelhecimento precoce (ligado a fatores vitícolas como o estresse hídrico). Portanto temos que o premox, sobretudo para Immelé, é antes de tudo um problema de adega e não de condução de vinhedos mal pensada!
No âmago da questão temos que ter este foco: onde está o erro que leva ao defeito? Um problema no vinhedo? Fatores ligados ao terroir? Fator intrínseco da própria uva? Técnica de vinificação abaixo do ideal? Problema de vedação, conservação, transporte ou armazenamento?
Prensa Domaine Drouhin (Wine Anorak)
POTENCIAL REDOX
É da natureza intrínseca da química dos vinhos, que ele se situe em algum ponto de uma linha contínua imaginária que tenha de um lado a oxidação e no outro extremo, a redução! A oxidação ou redução de um vinho não é um fenômeno incidental, nem aleatório e nem relacionado à sorte ou azar do enólogo. Atingir um ponto de equilíbrio entre esses extremos faz parte do status de arte de uma vinificação exemplar.
De acordo com a matéria-prima, uma dada variedade de uva, o profissional deverá ter na cachola, não só o conhecimento, mas os equipamentos adequados para dirigir seu trabalho de modo a conseguir o tão esperado e difícil equilíbrio.
De acordo com os perfis das diversas uvas brancas (nosso tema) há certos “modelos” de vinificação, que é claro, podem sofrer variações de acordo com cada casta. Os principais para vinhos brancos secos, são: “tipo terpênica” (castas aromáticas sobretudo Muscat, Gewurztraminer e Riesling), “tipo Sauvignon” (a mais redutiva de todas e igualmente a que exige mais cuidados técnicos, inclusive originando o pejorativo termo “vinho tecnológico”) e “tipo Chardonnay” (permissiva ao oxigênio, padrão Borgonha mas também aplicável ao Rhône por exemplo).
Quando falamos em “premox” automaticamente nos preocuparemos somente com a Chardonnay (não só da Borgonha), pois as experiências com técnicas oxidativas com Sauvignon, são a meu ver, desastrosas e de resultados que ferem a tipicidade da casta (como o uso de estágio em madeira, por exemplo).
Assim, a técnica borgonhesa prevê o aporte de oxigênio durante quase toda a vinificação. Alguns dos fatores técnicos que interferem no equilíbrio entre oxidação e redução são: prensagem, uso de barricas, amadurecimento nas borras finas com bâttonage, trasfegas e escolhas de sistemas vedantes (rolhas).
AS PISTAS ORGANOLÉPTICAS
Um vinho com potencial de envelhecimento mantém ao longo do tempo, aromas primários e desenvolve odores específicos, secundários e terciários. Todavia, a maioria dos brancos não são aptos a seguir esse padrão-ouro de maturação. Muitos irão sofrer um processo oxidativo (não necessariamente prematuro), perdendo o seu frutado e mostrando notas aromáticas pesadas, ainda que algumas vezes apreciadas, como mel e cera de abelha, resina de pinho e nos piores casos, naftalina. Outros descritores: cânfora, hidromel, ceras do tipo “lustra-móveis”. Essa evolução é acompanhada de uma coloração alaranjada e impressões amargas no retrogosto.
Tais defeitos incomodam mais nos vinhos em que se espera o contrário, Borgonha e Rhône, mas afetam todos os estilos de brancos, sejam tranquilos ou espumantes, secos ou doces e com quaisquer castas ou origens (um dos trabalhos publicados em revistas de enologia versa sobre castas gregas).
Como curiosidade, de acordo com o Tratado de Enologia 6ª edição, os tintos podem ter os aromas de figos e ameixas como equivalentes ao estado de oxidação. Sutilezas que nos jogam dúvidas sobre o que é de fato complexidade ou defeito.
Assim como “bouquet” é um termo francês que designa uma evolução aromática obtida em condições redutoras, o oposto também existe: em meio oxidativo um vinho ganha aromas de “évent” (se torna “éventé”) com as notas de maçãs podres da presença do etanal.
MARCADORES AROMÁTICOS DE OXIDAÇÃO
A grande sacada tecnológica foi a de identificar três compostos químicos presentes em vinhos que envelheceram prematuramente, sendo que nenhum deles presente em vinhos com oxidação prematura, ajudando a diferenciar a linha tênue que permite essa demarcação conceitual: premox não é um vinho que envelheceu antes do tempo! É um vinho com sua sensibilidade ao oxigênio alterada, defeito de natureza multifatorial.
Básica e tecnicamente, vale a pena saber que essa gangorra entre oxidação e redução, pode ser expressa em função de seus compostos químicos característicos, respectivamente o acetaldeído (etanal) e os sulfetos (na literatura inglesa, “sulphides”). Sulfetos estão normalmente relacionados a odores de ovos podres e também de “fósforo riscado” (adiante voltarei a isso). Já o aldeído acético (etanal) traz odores de maçãs podres (entre outros descritores também, como repolho azedo).
Ambos servem de marcadores de oxidação ou redução nas degustações que os enólogos realizam antes de ter o vinho pronto para se orientarem, reconhecendo para onde seu vinho está tendendo a seguir. O grande ator da oxidação prematura é, não por acaso, um derivado do acetaldeído: o sotolon! Este composto, muitas vezes é associado ao aroma de curry e ainda ao “rancio” típico dos Vin Doux Naturelles da França e alguns Portos, além de aromas de oxidação presentes no Jerez e Vin Jaune. Aliás, a subjetividade da noção de oxidação é marcante aqui, pois os altos teores em etanal livre ou combinados nestes vinhos fazem parte de sua tipicidade!
Ele, o sotolon, tem papel fundamental nos vinhos premox! Nestes vinhos, por similaridade testada em laboratório, ele pode assumir notas que lembrem mel ou cera de abelha. Percebam que é preciso uma certa coragem e conhecimento implícitos para afirmar que um vinho sofreu a oxidação prematura, pois assim como outros defeitos aromáticos enológicos, não é difícil ver pessoas atribuírem a tais aromas, um status de complexidade e não de falha. O sotolon tem outra particularidade: aumenta sua concentração quando o vinho fica separado de suas borras e ainda mais, se maturado em barricas de carvalho novo.
MECANISMOS ANTIOXIDANTES NATURAIS
Dentro do conceito de equilíbrio entre oxi-redução, temos que os agentes redutores são os que evitam a oxidação. Antioxidantes, para soar mais familiar! Para se aventurar na leitura do tema é preciso estar mesmo familiarizado com certos sinônimos: “potência redutora” significa capacidade de evitar a oxidação! Guardem bem isso!
Nos vinhos tintos temos os já bem difundidos polifenóis personalizados pelos taninos e antocianos. E nos brancos? Também temos um antioxidante, um aminoácido sulfuroso e seu nome é glutationa! Constituinte natural das plantas, tem também a função de desintoxicar as células.
A glutationa é o ponto-chave de acordo com Dubourdieu, o que desloca o “problema” da oxidação para o campo ao invés de se alojar nas técnicas de vinificação dentro da adega. Ele relata que há uma ligação muito forte entre os níveis deste aminoácido protetor e os teores de nitrogênio disponíveis nos mostos e isso, é função da planta antes de tudo: videiras debilitadas, com baixo aporte de nitrogênio, sob condições de seca severa, por exemplo, mostram baixa concentração de glutationa e por consequência devem produzir sucos mais oxidáveis.
Mais do que isso, os mostos destas uvas tenderão a ter uma fermentação lânguida, preocupação enorme para o enólogo, pois uma fermentação incompleta ou interrompida, além da dificuldade de retomada, pode conduzir a desvios causados por germes oportunistas, sendo o maior defeito organoléptico, a acidez volátil.
Assim, como o sotolon, os teores de glutationa são alterados pela ausência das borras e do carvalho novo: seus níveis caem! Prato cheio para que a oxidação seja sensível ao nosso olfato.
Em oposição ao potencial antioxidante, existem nas uvas situações que podem predispor a oxidação, como o grau de maturação e o estado sanitário delas. As ações enzimáticas são capitais, sobretudo no caso da enzima tirosinase (da própria uva) e da lacase, vinda de uvas que sofreram ação da Botrytis e apodreceram. Essa podridão que relato não é nobre e via de regra, é comum a qualquer colheita, que não é considerada como “alterada”, desde que não se ultrapasse um certo percentual de uvas podres (em geral, na literatura diz-se 15%). Atenção às safras úmidas, hein?
Les Demoiselles (lefrancbuveur)
VACINA ANTIOXIDANTE
Por mais esdrúxulo que possa parecer, o oxigênio pode ser o grande responsável pela capacidade de um vinho em não se oxidar no futuro, logicamente aliado aos outros fatores como a glutationa e técnicas adequadas às castas usadas na vinificação e à sanidade nutricional das mesmas. O oxigênio, apesar de Louis Pasteur ter considerado seu papel essencial na maturação de tintos, foi durante quase um século taxado como o inimigo do vinho, evita-lo era a marca de uma enologia racional.
O “tratamento” do vinho com O2 se chama hiperoxidação e deve ser feito antes da fermentação alcoólica, com o cuidado de se evitar o uso excessivo de SO2 ou mesmo suprimi-lo! Um trabalho alemão de 1977 mostrou melhor estabilidade de cor e resistência à oxidação, sem defeitos gustativos relacionados.
O oxigênio, em doses adequadas, aumenta o poder redutor de um vinho, desde que feito a partir do esmagamento dos bagos até a cuba de fermentação, no que se chama de operações pré-fermentativas. Após o fim da fermentação não mais! Um mosto de vinificação do tipo Chardonnay se receber excesso de SO2 ou privado de contato com o ar será muito mais sensível à oxidação futura. E olha que os mostos são cerca de 40 vezes mais oxidáveis do que os vinhos prontos! Achava que enologia era fácil? Deus salve os enólogos!
FATORES DE CAMPO (VINHEDOS)
A trama é complexa porque realmente não é somente um problema dentro da área de vinificação, mas oriundo da terra! Clark Smith disse em seu livro defender uma visão holística que une as disciplinas acadêmicas de viticultura e enologia. Elas de fato não podem ser vistas como independentes entre si. Não adianta fazer péssimas escolhas no campo e depois dizer que Deus não ajuda na hora de encher os tanques de vinificação!
A vivacidade dos solos é elemento primordial: um solo vivo e saudável (podemos checar isso observando se há minhocas nele) permite o ganho necessário para o suprimento nutricional da videira e o correto aporte alimentar das plantas irá gerar a “mineralidade”! Aqui não cumprindo o sentido de sapidez, mas assegurando que os minerais irão desempenhar suas funções químicas no “baile da fermentação”, captando e liberando cargas iônicas que fazem o suporte maior da balança que contrapõe a oxidação e a redução.
Uma das “manias” mais modernas, repudiada por mestres como Émile Peynaud, é a de permitir a sobrematuração das uvas no pé, tirando proveito talvez do “aquecimento global”. Esse tempo excessivo, aos olhos de Smith, é suficiente para afetar negativamente a vida útil de um vinho. Uma frase emblemática dele: “Três semanas a mais no vinhedo (“extensive hangtime”) rouba uma década ou mais na adega”.
A esta técnica de sobrematuração, não por acaso, ele atribuiu o nome de “field oxidation”! A “oxidação de campo” usualmente leva a uma prematura característica frutada, seguida de oxidação, acidez volátil e secura. Isso pode ser traduzido sensorialmente quando notamos, nesses frutos colhidos com açúcares nas alturas, notas de avelãs, Porto Tawny ou mesmo bacon, tudo resultado da conhecida Reação de Maillard, onde açúcares e proteínas (liberadas pelas leveduras) se juntam liberando aromas “gordos”, adocicados e levemente empireumáticos.
A preocupação com o futuro do vinho, desde os vinhedos até a cantina, de maneira global e integrada fez surgir um novo conceito: Vineyard Enology! Essa “ciência” tem a prerrogativa de assistir a cultura das videiras baseada numa tríade essencial: promover a vida no solo (cultivo livre de pesticidas, de preferência evitando a monocultura entre outras coisas), buscar alcançar o equilíbrio de sabores dentro da própria videira (regulação hídrica e nutricional) e enfim, efetuar as colheitas num nível apropriado e saudável de maturidade.
OS TRABALHOS CIENTÍFICOS
Resumidamente, vi que alguns dos trabalhos científicos que analisaram o comportamento bioquímico dos vinhos brancos que sofrem alguma oxidação servem para corroborar a ideia de que certos fatores ligados a uva, como teores em polifenóis, no caso dos brancos, flavanóis e sais do ácido hidroxicinâmico, são cruciais.
Por que? Principalmente porque podem ser substratos de reações enzimáticas promovidas pelas próprias leveduras, ou seja, reforça a necessidade de se conhecer que tipo de uva se tem em mãos e como ela pode ser afetada pela ação das leveduras modificando o balanço entre redução e oxidação.
Outro fator importante foi a condição de estocagem destes vinhos: a temperatura (estudo de amostras guardadas a 0, 15 e 30 graus Celsius) modificou significativamente a atividade antioxidante dos vinhos que foi reduzida, bem como seu potencial redutor. Isso quer dizer em outras palavras que os vinhos perdem uma de suas essências que é a proteção contra radicais livres, além da tendência de oxidação e perda de paladar e digestibilidade, fundamentos da nova onda de se enxergar os vinhos por suas propriedades “terapêuticas” e nutricionais.
A temperatura, quanto mais alta, mais rapidamente degrada polifenóis das uvas estudadas.
NOTA SOBRE AS PRENSAS
Para os mais antigos vinicultores certos detalhes não passam despercebidos. Um deles, que tem sido levado em conta é a prensagem das uvas. Consideradas “fora de moda” as prensas verticais, dependendo das uvas que o vinhateiro possui, justamente estas propensas a oxidação precoce, podem ser bem melhores do que as modernas prensas horizontais pneumáticas.
Para vinificações do tipo “terpênicas” com uvas com boa maturidade fenólica e bom estado sanitário não faz muita diferença que tipo de prensagem se faz, o mesmo não acontece com outras variedades, daí a relevância de se compreender que uma nova tecnologia nem sempre é universal e muito menos induz a obsolescência de outras.
Tudo é uma questão de se aumentar a gama de ferramentas e não de varrer todo o conhecimento pregresso para fora da casa.
Uma prensa vertical pode levar a grandes economias: com elas se diminui sensivelmente a necessidade de se recorrer à maceração pelicular, decantação de borras mais intensa e colagens para melhor clarificação.
NOTA SOBRE SISTEMAS VEDANTES
O processo de engarrafamento é um momento fundamental de permissividade quase brutal ao oxigênio e por consequência os sistemas de vedação (rolhas e afins) que permitem em graus variáveis a presença de oxigênio são de suma importância, embora autores como Immelé reconheçam que eles não seriam os grandes culpados do processo, apenas representam o final de um mecanismo nascido bem antes.
Os obturadores de mais fraca permeabilidade ao oxigênio (da ordem de 1-2mg O2/ano) são os ideais, evitando também a necessidade de uso de SO2 acima de níveis razoáveis (10mg por litro de enxofre em estado livre). Rolhas de grande qualidade (sobretudo as mais longas, típicas dos grandes vinhos) tem esse perfil. Para termos de comparação, uma tampa de rosca permite o dobro disso em aporte de oxigênio.
No nosso caso, os vinhos brancos estilo Chardonnay-Borgonha são os que mais necessitam, de rolhas de baixa permeabilidade e sobretudo de qualidade homogênea! A heterogeneidade da capacidade da cortiça em impedir a penetração de oxigênio é um de seus calcanhares de Aquiles. Por isso, para grandes vinhos de guarda, de grandes denominações a escolha de rolhas deve ser visando a máxima excelência!
A heterogeneidade é da própria natureza da cortiça, em casos de vinhos mais baratos, as variações dentro de um mesmo lote pode ser impressionante.
Técnicas novas, sobretudo a do “CO2 supercrítico” desenvolvida por Jean-Marie Aracile, permitiu o aparecimento de rolhas compostas, mesclando cortiça e matérias sintéticas como microesferas, destinadas a oferecer menos porosidade. Exemplo é a rolha DIAM (suberina + microesferas), que já é escolha de produtores bem conhecidos como Bouchard Père et fils.
Garrafas de vinhos que sofreram o efeito premox tem uma baixa concentração de SO2 livre, pois este é recombinado, de modo proporcional à permissividade do sistema vedante ao oxigênio.
O ACONSELHAMENTO DOS CRÍTICOS
QUEM ALERTA, ATENTO É
Clive Coates, especialista em Bourgogne, contou sua história: inicialmente, sem encontrar motivos para alardes, percebeu que várias notas de degustação falavam sobre garrafas de Borgonhas brancos inesperadamente oxidados (com idades variando entre 5 e 10 anos), parecendo tratar-se apenas uma dose de azar de bons compradores. Ele próprio, relatou possuir uma caixa de Puligny-Montrachet Les Demoiselles 1999: três de seis garrafas oxidadas bem antes do tempo presumido!
Na medida em que mais e mais casos iam sendo comentados em rede, admitiu-se a magnitude do problema bem como sua possível origem, nunca de safras anteriores a 1995 (os piores anos foram 96, 97 e 98). O que estava acontecendo afinal? O que estariam fazendo na vinificação desde então?
A primeira vilã foi prontamente posta sob suspeita: a rolha de cortiça. Embora haja correlação bem documentada sobre os diversos graus de permeabilidade ao oxigênio dos vedantes, aliado ao fato da observação de um decréscimo na qualidade deste material, isso por si não justificaria todo o processo de oxidação. Um vedante permissivo ao oxigênio é não mais que um co-fator de peso relativo, havendo mais “lapins” nesse mato.
Uma cascata de ponderações subsequentes, trouxeram ao centro do palco novos coadjuvantes tais como o uso insuficiente de SO2, a “bâtonnage” por ser oxidante (nota do redator: Dubourdieu contestaria isso com base em um artigo de sua autoria em 1992), as prensas e o fato de certos vinhateiros permitirem o contato com o oxigênio baseado na teoria de que isso preveniria oxidação futura (de novo, uma assertiva contestável, pois a técnica de hiperoxidação é mesmo verdadeira e benéfica se bem aplicada). Para terminar, as condições de transporte e armazenamento também foram para a berlinda porque o número de garrafas oxidadas era maior nos EUA do que na França.
GOD BLESS YOU, PLEASE, MRS.ROBINSON
Jancis Robinson escreveu no começo deste ano, iniciando o texto com um trocadilho com o processo de vinificação do tipo redutivo (reductio ad absurdum?), que poderiam surgir vinhos que fugissem do padrão de oxidação prematura, porém marcados pelas notas redutivas pungentes, lembrando fósforo riscado. Lembram-se do acetaldeído e dos sulfetos, acima citados? Tradução: o medo da oxidação prematura conduziu à uma loucura redutiva. Jancis aponta as técnicas redutoras na Borgonha (e em outras partes do mundo também), tais como diminuir a influência do carvalho novo, evitar o estágio “sur lies”, as trasfegas (que permitem contato não negligenciável com oxigênio) e amadurecimento em tanques ao invés de barricas de madeira.
Alguns que usam barricas fariam o atesto (completar o volume perdido na evaporação), deliberadamente com vinhos sabida e fortemente “reduzidos”, cheirando a sulfetos.
O problema é que essa “proteção” contra oxidação se mostra como um fator de mascaramento da fruta e do frescor dos vinhos, o que levou como contrapartida à uma tendência de vinificação que se opusesse ao “fósforo riscado” por meio de maior utilização de SO2 e até a supressão da fermentação malolática para um ganho em acidez, evitando um vinho jovem “chato” à degustação. A redução em excesso esconde o caráter do vinho! Lógico que dá para imaginar que essa bola de neve criada para equilibrar a balança oxidação-redução, cedo ou tarde, deixará de fazer sentido e provavelmente esmagará o vinho!
A solução? Tecnologia bem aplicada! Dominique Lafon, produtor na Borgonha, pergunta: por que eu deveria fazer vinhos reduzidos para evitar o premox? A resposta está em equipamentos capazes de calcular o risco oxidativo de garrafas sem mesmo ser necessário abri-las. E já é possível obter tal estimativa!
De fato, não se evolui apagando o passado: em 1920 o Dr. Otto Heinrich Warburg desenvolveu um artefato com o intuito de analisar a captação de oxigênio por células cancerosas. Treze anos depois, utilizando sua visão holística e multidisciplinar, Jean Ribereau-Gayon, professor de enologia em Bordeaux, apresentou um trabalho utilizando o mesmo aparelho para determinar o consumo de oxigênio dos vinhos tintos! Bingo!
EXISTEM REMÉDIOS PREVENTIVOS?
Podemos evitar a oxidação prematura? “Yes we can”! A manutenção do vinho sob suas borras finas é fundamental para a preservação de aromas frutados e propicia um estado de oxi-redução favorável ao desenvolvimento ulterior de um agradável bouquet e prevenindo ou evitando o surgimento de defeitos do tipo resinoso (oxidativo). Todavia, não obstante seja desejável e recomendável isso não garante que o desenvolvimento do vinho seja o melhor possível. De acordo com Dubourdieu, o fato mais desconcertante sobre o fenômeno premox é a sua natureza aleatória. A degustação de lotes de um mesmo vinho engarrafados ao mesmo tempo, com o mesmo lote de rolhas, sob as mesmas condições de guarda podem mostrar resultados díspares!
Os principais passos na prevenção do defeito são:
- Assegurar uma nutrição em nitrogênio adequado às necessidades das vinhas. Fatores prejudiciais são os rendimentos excessivos, a seca, a competição devido ao cultivo de outras plantas entre as fileiras de videiras (recomendado para aprofundamento das raízes) e o enraizamento superficial
- Limitação da extração de compostos fenólicos durante a prensagem para preservar os níveis de glutationa
- Proteção do mosto contra oxidação brutal através do uso de gases inertes e doses racionais de SO2
- Assegurar-se de que as fermentações se iniciem rapidamente e que sejam completas (sem açúcar residual) e um nível de clarificação compatível com a variedade usada
- Reduzir o tempo entre o fim da fermentação alcoólica e a malolática (pelo risco de ocorrer uma “janela” que pode levar a contaminações
- Amadurecer os vinhos num ambiente tão redutor quanto possível, mantendo doses eficazes de SO2 e bâtonnage, além de uso moderado de carvalho novo
- Limitar a presença de oxigênio no momento do engarrafamento por meio de gases inertes
- Escolher um sistema vedante adequado ao estilo de vinho desejado
CONCLUSÕES FINAIS
Bem pessoal, só posso dizer que dado todo o acima exposto, muitos dos “problemas” que surgem na modernidade podem ser resultados da falta de respeito com o passado, onde apesar das dificuldades, muito se sabia, mesmo com muitas vinificações ricas em acidez volátil (quem já bebeu vinho muito velho sabe). Não se trata de escolher um ou outro, mas aliá-los. O laboratório não é inimigo do campo e vice-versa.
Entretanto, apesar de toda essa coleta de dados, sabemos que o assunto não está nem perto de ser devidamente esgotado! Compartilho com vocês dois pontos que me elevam o sentimento de obscuridade do assunto: primeiro, já citado, a condição aleatória de ocorrência do fenômeno descrita por Dubourdieu. Segundo lugar, durante toda a leitura sobre as videiras e seus perfis nutricionais eu vi a importância do nitrogênio e aí pergunto: se sabemos por exemplo que as castas de Champagne, não foram escolhidas por acaso e sim, por que são cepas extremamente hábeis em captar nitrogênio, que é fator decisivo na qualidade da “prise de mousse”, então por que a Chardonnay pode ser deficiente em glutationa, já que cumpre um pré-requisito alimentar básico e a Borgonha não é exatamente conhecida por viver em condições de sofrimento hídrico?
Enfim, é para isso que compartilhamos conhecimento: para que surjam dúvidas e quem sabe a partir destas, não consigamos ligar pontos que antes nos pareciam distantes? Apenas viver a vida é bom; tentar entender seus mecanismos também. É só uma questão de atenção aos detalhes. Ter ouvidos para a natureza é a premissa dos bons enólogos que fazem tudo isso e muito mais, apenas para que possamos nos deliciar com um líquido numa taça. Longa vida aos que se preocupam e dedicam suas vidas a isso! Agradeço-lhes com profundo respeito!
Santé!