Desde a infância aprendi a curtir viagens de carro pelo sul do país e foi igualmente lá, nessa doce infância, que escolhi títulos de redação tão abestalhados e pouco inspirados como esse acima. Ultimamente em função da incontornável e típica pressa do século XXI, fui de São Paulo a Porto Alegre de avião e de lá com carro em direção aos vinhedos da Serra Gaúcha.
Embarcamos e ao olhar para trás, entra uma senhora que pede ajuda para guardar sua bagagem de mão, um pouco pesada: era a produtora Lizete Vicari (o espírito do vinho já deu o ar de sua graça antes mesmo de decolarmos).
Bateu uma vontade quase incontrolável de conversar com ela, tentar expor minhas enormes preocupações com a qualidade dos vinhos de intervenção mínima, sem jamais desrespeitá-la porque não sou fundamentalista nesse quesito. Respeito as pessoas que pensam diferente, mas não sem me coçar para iniciar uma saudável discussão de pontos de vista, sempre com intenção dialética, buscando o encontro de novas visões para ambos os lados.
Mas ela estava cansada e precisava de descanso. Ao descermos ela pediu para que eu pegasse sua malinha e eu perguntei maroto: tem vinho aí dentro? Ela, como não me conhecia, riu e obviamente se saiu com a clássica indagação “como você sabe”. Lhe expliquei que já a conhecia e tinha provado alguns de seus vinhos por aí afora. Ela foi muito doce e simpática, pena que não pude ir para Monte Belo do Sul revê-la. Na mala tinha mais queijos do que vinhos, disse-me ela com expressão feliz.
Pausa narrativa: só serei minucioso quando puder me lembrar das minúcias, do contrário me expressarei com o máximo de conforto e relaxamento possíveis.
Para início de conversa, se localizar no tempo e principalmente no espaço apenas observando as placas de sinalização das estradas, é tarefa para poucos! “Orientação” não parece fazer parte dos objetivos rodoviários do estado. Portanto, tenham leveza de espírito e uma paciência digna de um bom coração aventureiro para prosseguir.
Mas após rodarmos uns oitenta quilômetros, onde quer que nos percamos desviando da rota, haverá uma paisagem bonita de se ver, em meio às ondulações das colinas e do suave colorido das plantações, sobretudo as videiras.
Uvas em espaldeiras
Os parreirais: troncos espessos, troncos finos, plantações com conduções modernas (em espaldeira), em modelos arcaicos de “latada” (para uvas não-viníferas), tudo sequinho uma vez que estamos no inverno, apenas um ou outro broto aqui e acolá, onde o sol se fez clemente (e esse inverno está “quente”).
Enfim, avistamos o pórtico! A tradicional “Pipa” gigante que nos acolhe cidade adentro, no meio da noite. Eu e Raquel, mortinhos de fome, desfrutamos da minha providencial escolha de hotel: no centro da cidade a uns trinta metros de uma cantina familiar, onde somos tratados com sorrisos e atenção e degustamos nossa primeira garrafa de um bom tinto da região: Salton Talento 2011, perfeito, agradável, ainda jovial e ótima companhia à mesa, escoltando uma boa carne grelhada com polenta.
Primeira manhã: terça-feira, 22 de agosto. Para onde vamos? Que tal começarmos pela Pizzato? Um porto seguro de qualidade, empresa familiar, pequena, bem gerida e onde degustamos uma deliciosa e didática sequência de vinhos, fechando com o espetacular Pizzato DNA 99, que sempre me lembra o paladar de um bom Ribera del Duero, com potência sutil e elegância veemente. E dá-lhe conversas falando dos dois irmãos principalmente: Ivo (infelizmente não mais entre nós, vítima de acidente automobilístico) e Flávio, um modelo que eu seguiria se eu fosse um enólogo: teoricamente embasadíssimo e na prática vinícola um incansável e sábio condutor, que busca conhecer a identidade de cada safra e assim um modo diferente de trata-las, como se realmente decifrasse códigos genéticos! Vinificações em forma de receita de bolo? Aqui não!
Vinhedos da Pizzato Vinhas e Vinhos
Dica imperdível: estive lá há um ano e meio e não era possível provar esse vinho ícone. Hoje ele está disponível sob a forma de degustação em taças e vale a pena pagar por uma dose! Por favor, não percam essa chance!
Fim da manhã, hora do almoço! Vale dos Vinhedos? Que tal uma visita à Vallontano? Sei que o Luís Henrique Zanini não vai estar lá de novo, está sempre viajando e ele já havia me respondido pelo Messenger do Facebook, quando perguntei se o veria ali (risos).
Ultimamente eu me recuso a ir à região e não ir almoçar no seu Café & Risoteria, de preferência pedindo uma garrafa do espumante LH Zanini, atualmente disponível a safra 2012, um grande prazer em cada uma de suas 90 milhões de borbulhas (para quem não sabe essa é a estimativa do número de bolhas de um espumante de método tradicional).
Esse vinho leva Chardonnay e Pinot Noir, passa dois anos em contato com as leveduras e é um Extra Brut. O rótulo tão simples quanto lindo, foi desenhado pelo artista belga Maurice Rosy (seus traços me lembram das “Aventuras de Tintim”).
Espumante LH Zanini Extra Brut 2012
Acham que é só isso? Graças a Deus não! A boa surpresa não faltou e enquanto esperávamos os nossos risotos, tivemos como antepasto umas torradinhas acompanhadas de uma espécie de mini-degustação de azeites nacionais: três garrafas de “Oliveiras do Seival”, azeites varietais extra-virgem (cada qual com uma espécie específica de azeitonas): Arbequina, Koroneiki e Arbosana! Absolutamente imperdíveis, são produzidos na cidade de Candiota e vendidos pela Aninha Lazzaroto (conheçam-na no Facebook), que está no distrito de Tuiuty, ali pertinho de Bento. Ela não costuma vender para pessoas físicas, mas eu fui agraciado e trouxe seis garrafas para nosso deleite!
Azeites varietais Oliveiras do Seival
Manhã seguinte: depois de tentar e não conseguir em outras passagens por Bento Gonçalves, finalmente combinei uma visita à vinícola Angheben!
Sempre troquei ideias sobre enologia com o Eduardo Angheben, já não era sem tempo estarmos juntos para continuarmos as conversas e degustarmos os vinhos que a família de ascendência trentina elabora (Trentino-Alto Adige é uma região italiana bilíngue oficialmente – alemão é falado).
Degustamos cinco tintos e um espumante, servido de propósito após os tintos, já que o Edu estava (com razão) muito seguro de si quanto ao fato do seu espumante, sempre excelente, não ser afetado pela experiência mais “pesada” da prova dos tintos. Até hoje o único que tinha visto fazer isso numa prova com tintos “de peso” foi Jorge Lucki que nos apresentou um Riesling Domaine Weinbach após uma sessão que teve Ornellaia e Pichon Longueville, só para citar alguns.
Os tintos, cada um de personalidade própria, variam em intensidade e complexidade. Provamos Pinot Noir, Barbera, Touriga Nacional, Cabernet Sauvignon (com delicioso e curioso aroma de mel) e fechamos com um ótimo Tannat.
Vinhos Angheben
Dica: verão que alguns rótulos da casa, não tem menção de safras. Na busca pela qualidade e equilíbrio, Edu nos disse que são feitos blends muito parecidos com os vinhos base de Champagne, com uma mistura de vinho mais jovem e um pouco de safras anteriores (em geral até 3-4 anos antes, não mais), num processo quase alquimista que visa equilibrar as melhores qualidades de cada vinho no produto final.
Curiosidade: numa pequena parede da vinícola há diversos desenhos feitos por crianças, deixando suas impressões sobre os vinhos e as uvas, de modo muito espontâneo, com resultados que valem a pena parar uns minutos para apreciar.
Desenhos feitos por crianças
Após outro almoço na Vallontano, desta vez degustando uma garrafa do espumante Rosé Brut, seguimos para a vinícola Miolo, uma gigante dentro do vale.
Combinei antes com o Fábio Miolo e quando chegamos fomos muito bem recebidos por um jovem enólogo, Matias, que nos presenteou com uma apresentação da vinícola tão boa que me lembrou a visita que fizemos com a ABS-SP há três anos, conduzida então por Adriano Miolo! Ou seja, parabéns Matias!
O “complexo Miolo” é muito bonito e organizado, havia diversos grupos conhecendo o local, que tem um mirante espetacular com uma bela vista panorâmica do entorno, obviamente do lindo hotel “Spa do Vinho” de frente para a vinícola e ladeado pelo famoso “Lote 43”.
Vinícola Miolo (ao fundo Spa do Vinho)
Não por acaso consegui belas e curiosas fotos, incluindo o nosso pássaro amigo (foto) que certamente aguardava uma boa refeição por ali.
Amigo pássaro em visita rápida
Na sala de degustações, estimulamos o sensório iniciando os trabalhos com o Millésime Brut 2012, ainda com coloração de um jovem vinho, cremoso e “pétillant” (cheio de perlage). Depois fomos de Brut Rosé, Sauvignon Blanc 2017 Colheita Noturna (fresquíssimo) e o Alvarinho Quinta do Seival (barricado). Dentre os tintos, Castas Portuguesas e Miolo Terroir, este último sempre elegante. Matias me perguntou se havia algo que eu quisesse provar, integralmente à minha escolha. E a minha foi Chardonnay Cuvée Giuseppe 2015, gosto dos brancos dessa linha!
Day after: vamos pra Tuiuty conhecer a Salton! Falei antes com a Luciana, mas ela estava literalmente “no meio da festa” de comemoração dos 107 anos da empresa!
Acolhidos por uma moça muito esforçada, mas ainda no começo do aprendizado enológico, nos impressionamos com a enorme capacidade da empresa, com os maiores tanques de fermentação da região, sobretudo os dos espumantes de método Charmat. Degustamos alguns vinhos e não deixei de comprar na loja uma garrafa de Talento 2011 e do delicioso e elegante Septimum 2009.
Vinícola Salton
Almoço imperdível: por favor, quem amar a elegância e a parcimônia não deve deixar de ir ao restaurante, tão pequenino quanto amável, “Sapore & Piacere Caffe Cucina e Altri”. Ali se come bem, se paga pouco e saímos felizes. Mas é quase um detox, quando comparado aos outros restaurantes da cidade em que tudo é servido em doses cavalares. Melhor ainda quando encontramos amigos, sem combinar. Meus amigos Rogério, Camila e o filho Pedro estavam chegando e nos sentamos próximos batendo um papo gostoso e aprendendo sobre as trilhas de bike da região.
Final do dia: pausa para Raquel ir ao salão de cabeleireiros e um bom café ao lado do Hotel Laghetto.
E à noite uma atração imperdível que é o “Pizza entre vinhos”, restaurante localizado dentro do Vale dos Vinhedos (anexo ao já famoso Mamma Gema) que tem uma pizza maravilhosa, tão boa quanto qualquer uma das melhores de São Paulo e com um detalhe que faz a diferença: não há carta de vinhos. Existem inúmeras prateleiras cheias de vinhos com os preços bem indicados. Você escolhe o que deseja, leva à mesa e o vinho é aberto. Eu particularmente adorei essa modalidade de escolha. O lugar é muito concorrido e tivemos que esperar cerca de quarenta minutos mesmo chegando às oito da noite.
Manhã de 26 de agosto, acordamos com ideia de ir à Casa Valduga, outro grande produtor que se tornou um esmerado polo de turismo enopedagógico.
Chegamos pouco depois das dez, sem avisar ninguém, e enquanto aguardávamos a visita guiada de uma hora e meia de duração, nos divertimos andando sem rumo, vendo as pousadas, a loja (enoteca), o wine bar e um cachorro preto de raça indefinida, simpaticíssimo, que ficava rodeando a sala de recepção do tour, onde estava presente o Sr. João Valduga.
Enquanto voltava da área da pousada lá veio o João que nos cumprimentou com muita educação e atrás dele o cachorro preto, daí entendemos que era um fidelíssimo e respeitoso escudeiro, já que não invadiu a sala onde o dono estava.
Casa Valduga: recepção e enoteca
A vinícola é também um grandioso complexo de extremo apelo turístico que é bem planejado. A visita é longa, guiada por pessoa com formação em enologia (quando digo isso pode se tratar de um enólogo ou técnico em enologia), a paisagem muito bonita, com uma bela loja, restaurante, várias pousadas e no término da visita, após podermos solicitar a degustação de inúmeros rótulos da casa, ganhamos de presente a bela taça de cristal de Blumenau que recebemos na entrada, com direito à uma utilíssima embalagem que além de fácil manuseio, permitiu que eu trouxesse nossas duas taças na mala, sem que se quebrassem.
Não sem mérito há uma placa onde se lê: “Estou em um dos 1000 lugares para se conhecer antes de morrer (New York Times – Best-seller).
A Casa Valduga é por excelência um local voltado para os vinhos espumantes, de onde saem alguns dos melhores rótulos nacionais. A produção tem um volume de respeito, exportam para mais de vinte países e suas caves subterrâneas nos fazem lembrar de algumas Maisons de Champagne.
Depois de outro almoço na Vallontano (pela terceira vez), degustando agora um Merlot Reserva 2012, partimos para a nossa última visita à vinícolas, para terminar com festa e borbulhas: Cave Geisse no distrito de Pinto Bandeira, bem pertinho do centro de Bento Gonçalves, conduzidos pela amiga Vania, profunda conhecedora dos vinhos de sua terra.
A Cave Geisse está se transformando também numa espécie de parque temático com direito a uma convidativa área de lazer onde há almofadões que servem de confortáveis sofás, espalhados pelo gramado em frente a um food truck, que serve comidas e espumantes da casa!
Cave Geisse: vinho e lazer
Dá para pensar em explorar o local de bike também. Enfim, as vinícolas, mesmo as não gigantes, estão se tornando cada vez mais atraentes para o afluxo de turistas em busca de boas horas de lazer com pinceladas enogastronômicas em doses mais sutis.
Há também uma pitoresca placa de entrada: “Cuidado!! Você está entrando no apaixonante mundo Cave Geisse”.
Ali poderá encontrar os pouquíssimos rótulos de vinhos tintos, todos feitos no Chile pelo Sr. Mário Geisse e seu competente enólogo Carlos Abarzua, ambos chilenos.
Aqui não há um “exército” de tanques de fermentação, a visita é bem mais rápida, porém há grandes tesouros naquelas caves escuras: existem vinhos que estão há muito tempo em contato com as borras de leveduras ainda, aguardando, às vezes sob encomenda, que tenham a sua degola (dégorgement tardio tal como em grandes vinhos de Champagne, como Bollinger RD) e finalmente sejam vendidos para consumo.
Depois da pequena e preciosa sala de remuage, partimos para a degustação que é escolhida pelo visitante ainda na entrada. Há três modalidades com direito a vinhos de complexidades crescentes. Nós escolhemos a versão “premium”, de R$80 que são revertidos integralmente na compra de produtos da loja.
A degustação incluiu um Brut com a combinação clássica de Chardonnay e Pinot Noir, um Brut Blanc de noir (somente com Pinot Noir) e um Brut Rosé da linha Terroir.
Cave Geisse: degustação
No penúltimo dia, um domingo, pouco se podia fazer. Pouco mesmo! A cidade fica quase abandonada, restaurantes não abrem para a nossa paulistana surpresa, onde o fim de semana é impulsionado por comida full time.
Dia nublado, bom para sair de carro e se perder literalmente, andando sem pretender chegar a lugar algum, fomos descobrindo paisagens belíssimas após termos passado por Faria Lemos e além. Muitos parreirais, sem sequer imaginar a quem pertencem.
Depois de não achar lugar nenhum para comer na cidade, obviamente só restava uma chance: Vale dos Vinhedos! E o local escolhido foi o Mamma Gema, um prédio majestoso, chique e cheio de gente bonita, aparentando ser a nata da sociedade local. Valer a pena ir! Tomamos um Tannat da Campanha, o Guatambu Rastros do Pampa 2015, que é bom, muito gostoso e barato! Não deixem de provar!
Bem, acho que posso dizer que fizemos um programa típico da região, não obstante tenhamos recusado o famoso galeto “primo canto”, mas comido um churrasco num restaurante tradicional de rodízio, acompanhado de um Vallontano Tannat Reserva 2012.
Os grandes continuam grandes, os pequenos continuam surpreendendo e sendo dignos de serem provados e conhecidos sem moderação! Que tenham todos uma longa e harmoniosa vida, sem nenhum tipo de concorrência predatória, o que tiraria o charme da região.
Não foi a primeira e nem a última vez que pretendo estar na Serra Gaúcha. Há sempre coisas boas a serem descobertas e relembradas.
Saúde!