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E ontem (15 de setembro) ao abrir o Facebook, me deparei com um comentário pertinente de meu amigo Peter Wolfenbüettel, lembrando aos amigos que se iniciam nessa paixão, que oficialmente, a região de Limoux no sul da França, fazia vinhos espumantes há quase duzentos antes da região de Champagne.
O esforço de Peter é corrigir, no mínimo fazer-se saber que o Champagne não foi o primeiro vinho espumante da história. Logo se seguiu um comentário que é comum quando nos damos com esse tipo de informação: ora, então essa visão de Dom Perignon, que teria inventado o método, que teria dito “estar bebendo estrelas” é uma romantização injusta, uma estratégia de marketing para a Moët & Chandon vender vinhos? A resposta é um tenro e sonoro não!
Vamos cair na história?
Uma confissão de um prazer pessoal: eu quando leio ensinamentos preciosos nos livros que busco, quase sagrados e inacessíveis como aqueles do filme “O nome da rosa”, me sinto como se estivesse ouvindo as palavras de um sábio e não exercendo a leitura.
Agora vou passar a ser um contador de histórias. Óbvio que ela estará aqui escrita, mas tentem me imaginar como um protagonista de uma propagação da informação através da velha e boa “tradição oral”
De qualquer forma, seja por meios acessíveis ao grande público ou reservado a poucos sortudos que conseguem atingir suas buscas de boas fontes de saber: quem sabe conta, não esconde!
Pois bem, desde pelo menos desde 1531 a região de Limoux, no Languedoc, produz vinhos espumantes através do conhecimento de monges beneditinos da Abadia de Saint-Hilaire, num método hoje conhecido como “ancestral”.
Esse modo de fazê-los difere dos métodos mais atuais (embora seja similar ao Asti usado para moscatéis doces frisantes) pela diferença de se consegui-los com apenas uma fermentação em garrafa, ao invés de duas, como no método “tradicional ou champenoise” e também o Charmat.
Pausa esclarecedora: aliás pode-se aferir que o método Asti está para o ancestral assim como o Charmat está para o champenoise, pois ambos são feitos em tanques enquanto os outros dois, que arbitrariamente chamarei de “clássicos” para facilitar, são feitos em garrafas.
O método ancestral (também chamado “rural” na França) era feito assim: se fermenta parcialmente um vinho base. Essa fermentação é interrompida precocemente e “possivelmente” engarrafados a seguir. As garrafas, que existiam na Idade Média, eram muito frágeis antes do século XVII. Ainda não obtive uma resposta satisfatória se realmente os monges paravam a fermentação conscientes do que estavam fazendo ou não. Opinião pessoal: creio que sabiam que se interrompessem o processo num certo estágio, os vinhos sairiam frescos pela sua “petilância” (presença de bolhas). Aliás os vinhos tranquilos (não-efervescentes) de Limoux eram reputadíssimos desde a Idade Medieval.
Lembremos que já que ninguém sequer sonhava com o conhecimento real do que fosse uma fermentação do ponto de vista científico, o que se tinha era um conhecimento empírico em que se conseguia padronizar certos produtos (pão, vinho e cerveja) por meio de digamos, um excelente feeling e savoir-faire.
Diz-se que os vinhos fermentavam por um tempo (empírico a ser controlado pelos monges) e depois eram engarrafados para consumo imediato na primeira lua cheia ou minguante após a interrupção da fermentação. Diferente do método que se vislumbrou em Champagne, onde dois fatores os distinguem: a assemblage (em Limoux era apenas um vinho da uva Mauzac) e o envelhecimento em garrafa (inexistente no método ancestral).
Hoje em dia, com controles de temperatura, a fermentação é cessada pelo frio (como o Asti) e retomada após o tempo desejado, até o nível de açúcar residual desejado.
Também rezam os livros que Dom Perignon se correspondia com os monges beneditinos de Saint-Hilaire para trocarem expertises e que até teria visitado a abadia meridional. Aliás, dizem também que ele queria aprender como EVITAR a formação de bolhas, que explodiam garrafas.
Continuemos, há muito a se dizer. Bem, e o método tradicional? Quem inventou o Champagne?
Oficialmente a primeira “Maison” de Champagne a existir como casa produtora de vinhos espumantes da região de Champagne foi a Ruinart, em 01/09/1729, por Nicolas Ruinart. Mais uma informação legal: Thierry Ruinart era um monge beneditino, assessor pessoal de Dom Perignon e tio de Nicolas.
O ano era 1729. Sabia-se que a região de Champagne fazia seus espumantes relativamente parecidos com o que conhecemos hoje, desde algo entre 1695 e 1698, sendo que Dom Perignon iniciou seus trabalhos na Abadia de Hautvillers em 1688.
O primeiro documento oficial fazendo referência a um vinho espumante francês foi redigido em que língua? Bravo para quem respondeu inglês!!
Sir George Etherege escreveu em “The Man of Mode”, em 1676:
To the mall and the park
Where we love till ‘tis dark
Then sparklin champaign
Puts an end to their reign
Mas eu não escrevi que o vinho era francês? Eu não disse que o vinho era inglês!
Pois bem, vamos além: em 17/12/1662 um documento foi redigido pelo mestre em vidros e grande cientista chamado Christopher Merrett. Ele dizia:
“Os produtores de vinho dos tempos recentes usam vastas quantidades de açúcar e melaço em todos os tipos de vinhos para tornarem a bebida avivada, espumante e para dar-lhes espírito, bem como para corrigir seus sabores desagradáveis que as uvas, mostos e a redução conferem”
Traduzindo: ingleses não faziam vinhos, mas sempre foram grandes compradores. Vinhos não eram vendidos em garrafas mas viajavam por mar em tonéis para depois serem vendidos a granel ou engarrafados. Ingleses compravam vinhos franceses também. O significado disso é que os britânicos recebiam quaisquer vinhos e lhes apeteciam “reaviva-los”. O modo como faziam isso era próprio do conhecimento empírico deles! Reavivar um vinho significava adicionar-lhes uvas, sucos de outras uvas para que refermentassem e se tornassem “vivos” através das bolhas que surgiriam! Também gostavam do “espírito” que significa maior teor alcoólico! A concentração era dada pela técnica de reduzi-los por fervura que, porém, lhes faria evaporar o álcool, que só poderia ser restituído pela refermentação.
O que pretende ser dito é que ingleses, praticavam a metodologia de uma segunda fermentação talvez no mínimo por uma década antes de Dom Perignon pôr os pés em Hautvillers e mais de trinta anos antes da primeira Maison de Champagne ser instalada.
Mais: por não saber dominar a arte da dosagem de açúcar para a segunda fermentação (antigamente chamada de “titrage” e hoje de “tirage”) é que podemos dizer que a Champagne passou seus primeiros 140 anos fazendo espumantes à base do prolongamento da primeira fermentação em garrafa e não da segunda. Por que?
A região de Champagne é muito fria! A média anual de temperaturas é em torno de 10 graus Celsius. Costuma-se inferir que as bolhas teriam nascido por acaso e que a explicação seria que a obtenção de sucos de cor muito clara, mesmo vindos de uvas de pele escura, reforçavam seus aromas. Os champenoises passaram então a valorizar esse fato e extrair sucos mais claros possíveis para a preservação do frescor e aromas pós-fermentativos.
Porém os vinhos eram alojados em tonéis por cerca de dois anos e notaram que isso levava o esforço inicial por água abaixo. A solução foi transferi-los para recipientes menores, que eram garrafas cuidadosamente vedadas! Por pura observação, sem nenhum conhecimento científico que os embasassem, perceberam que estes vinhos assim alojados, desenvolviam bolhas, se tornando espumantes, espuma tão mais intensa quanto menor fosse a intensidade de cor e teor alcoólico do vinho.
Sim! Quando entrassem ali teriam um certo açúcar residual, que é o alimento pelo qual as leveduras o transformam em álcool e CO2. Os que tinham sobras maiores de açúcar geravam mais álcool e gás carbônico e assim nascia um estilo de vinho (que por isso disse acima que os champenoises faziam, não uma segunda fermentação, mas apenas observavam a progressão da primeira).
Somente em 1801 por trabalho de Jean-Antoine Chaptal é que se podia precisar a quantidade de açúcar exata para se produzir efervescência sem riscos de excessos (que poderiam criar tanto CO2 que explodiriam as garrafas, fato comum no século XVII)! E somente em 1836 com a invenção do primeiro refratômetro portátil (que estima o teor de açúcar de uma fruta fora do laboratório), foi possível dar mais um passo adiante no aperfeiçoamento da prática de produção. Finalmente a partir de 1857, com Pasteur, as últimas faces do mistério, dessa vez do universo microbiológico das leveduras, é que chegamos onde estamos.
Achavam que era fácil?
E Dom Pierre Perignon? É uma criatura de Deus ou do Diabo?
Há uma HQ francesa publicada há alguns anos que demoniza o monge mais famoso da enologia. Disseram que ele foi à Inglaterra não só roubar a ideia de Merrett (sobre a efervescência obtida pela adição de açúcares), mas para assassiná-lo. Talvez jamais saibamos!
Dramas à parte devemos dizer que Dom Perignon fez muito pela evolução da metodologia, com diversos aperfeiçoamentos na cadeia de produção. Quais seus méritos?
Preâmbulo: tudo o que escrevo a seguir é baseado numa narrativa publicada em 1718, por um monge da mesma congregação de Dom Perignon, transcrito por Roger Dion, chamada “Maneira de cultivar a vinha e de fazer o vinho em Champagne”.
O que fez o monge?
– Mandou arrancar todas as vinhas da Abadia de Hautvillers e replantou somente a casta Pinot Noir.
– Se engajou na obtenção de uvas de diversas procedências de modo a variar as origens e misturar (assemblage) diferentes qualidades resultantes de solos e condições climáticas diferentes
– Determinou que a maturidade deve ser perfeita e as uvas recolhidas por frações na medida em que forem atingindo a plena maturidade, ou seja, instaurou a metodologia de “triagens sucessivas”, até hoje aplicadas não só na região como em grandes vinhos licorosos feitos com uvas botritizadas, como no Châteu d’Yquem
– Como extensão, determinava que todas as impurezas deveriam ser descartadas, tais como bagos verdes ou podres
– Determinava a colheita apenas na aurora do dia, evitando que o aquecimento dos bagos, deteriorassem o seu frescor
– Os lotes de uvas eram transportados em pequenas caixas, escoados, identificados em função das diversas origens e misturados na prensa em razão de suas qualidades complementares
– Preconizava que após a fermentação se aplicaria a prática de colagens e trasfegas para que os vinhos fossem mais estáveis no tempo quando engarrafados, o que também garantiria a possibilidade de fazer uma melhor “tomada de espuma”
Enfim, amigos, esta é a história tal qual narrada em livros dos quais deposito a mais plena confiança em seu conteúdo, infelizmente na maioria deles, de difícil acesso e sem traduções para outras línguas que não a francesa.
Espero ter contribuído tal como o meu amigo Peter, que é advogado, dando a todos os apaixonados, creio que também homens justos, as provas necessárias para dar a César o que é de César, ajudando a reparar erros interpretativos por nos basearmos em informações incompletas. E que a vida, essa sim, seja a mais completa, plena e saudável possível.
Santé!
Bibliografia:
– Les vins effervescents – du terroir à la bulle – Gérard Liger-Belair e Joël Rochards
Ed. Dunod – Paris – 2008
– Le livre du Pinot Noir – Robert J. Boidron – Lavoisier Tec & Doc – Paris 2016
– Christie’s World Encyclopedia of Champagne & Sparkling Wine – Tom Stevenson e Essi Avellan
Sterling Epicure – New York – 2014