Hermitager le Bordeaux: Prática habitual iniciada no século 16 para dar mais corpo aos então anêmicos vinhos de Bordeaux, a adição de Syrah – chamada Hermitage naquela época – a esses vinhos foi interrompida em 1936 quando as regras da AOC Bordeaux sobre uvas permitidas foram oficializadas pelo INAO. Mas parece que alguns estão voltando a usar a uva do Rhône, embora não oficialmente
O uso do prefixo “super” em relação a vinhos começou na Toscana. Em 1872, o barão Ricasoli (1809-1880) definiu a fórmula do Chianti Classico, com 70% de Sangiovese e o restante de Canaiolo e Malvasia.
Giacomo Tachis
Mas, no final da década de 1960, alguns produtores da região acharam-se engessados pelas regras da Denominazione di Origine Controllata e quiseram explorar melhor suas terras. O primeiro foi o marquês Incisa della Rocchetta que, com o enólogo Giacomo Tachis, produziu o Sassicaia. O motivo?
O vinhedo da região de Bolgheri, no norte de Maremma, era pedregoso, lembrando a área de Graves, na Margem Esquerda de Bordeaux, e por isso pobre para a Sangiovese, mas perfeito para as Cabernet Sauvignon e Franc que prosperam ali. Prevendo que essas uvas produziriam vinhos excelentes e longevos em seus vinhedos, o marquês decidiu abrir mão da autóctone Sangiovese e plantou as francesas. Mas a expressão “supertoscano” não começou a ser usada nessa época.
O Marquês Antinori e sua família
Isso aconteceu quando outro nobre italiano, o Marquês Antinori, combinou a Sangiovese com a Cabernet Sauvignon para fazer o Tignanello. Como seus vinhos não respeitavam as regras da Chianti Classico DOC, não podiam ser definidos como tal, e foram vendidos oficialmente como “vino da tavola”, a mais baixa classificação dos vinhos italianos.
Burton Anderson
Extraoficialmente, porém, foram chamados de “supertoscanos”. Embora a questão seja controvertida, alguns acreditam que o criador da expressão tenha sido o escritor Burton Anderson, que fazia a cobertura da Itália para a Wine Spectator na década de 1980. Hoje, muitos desses vinhos são produzidos sob a apelação IGT (Indicazione Geografica Tipica), o que dá ao produtor mais flexibilidade.
E o que tudo isso tem a ver com Bordeaux? Ou melhor, com os superbordeaux?
O prefixo super, neste caso, remete a uma prática antiga que envolve o uso, no corte bordalês, de uma uva que não faz parte do grupo de variedades permitidas pela Bordeaux AOC de 1936: a Syrah. Nos séculos 18 e 19, a maioria dos vinhos de Bordeaux continham Syrah. Os claretes eram menos encorpados do que hoje – alguns diziam que eram “anêmicos” – e nas safras mais fracas, os produtores não hesitavam em adicionar a Syrah aos Bordeaux, conferindo a estes mais cor e estrutura.
Alguns autores, como John Livingstone-Learmonth, em seu The Wines of the Northern Rhône, explicam melhor a ideia. Ele comenta: “fica claro que Bordeaux comprava Hermitage por dois motivos principais – remédio e segurança. De vez em quando, a vaidade pode ter orientado a decisão, pois os bordaleses queriam fazer vinhos estrelados com a ajuda de um bom ano de Hermitage, o que eu chamaria de um Ano Glorioso”. Claro que, quando o Rhône produzia Syrah medíocre, o paciente bordalês ficava sem remédio…
Ele acrescenta que o papel de “vinho-remédio” dos Hermitage durou mais de 100 anos, até o advento da filoxera, que atingiu o Rhône em 1877. Menciona ainda H. Warner Allen, que, em seu History of Wine, cita The Letter Books of Nathaniel Johnston, escrito entre 1799 e 1809: “O Lafitte [sic] de 1795, feito com Hermitage, foi o vinho mais apreciado dessa safra”.
Thomas Duroux
Um dos adeptos contemporâneos dessa prática é Thomas Duroux, enólogo do Château Palmer, conforme noticiou há algum tempo Roger Morris no site palatepress.com. Duroux contou ao autor que participou de uma degustação em San Francisco com um colecionador que tinha um Lafite feito com Hermitage.
A experiência levou-o a sugerir aos proprietários do Palmer a produzir algumas garrafas de vinho com a adição de vinho de Syrah do norte do Rhône, e foi assim que surgiu o “Historical XIXth Century Wine 20.04”, que não leva nem Bordeaux, nem Château Palmer no rótulo. Foram apenas 100 caixas,com 85 por cento de vinho próprio e 15 por cento de Hermitage. O vinho destinou-se apenas a alguns restaurantes dos Estados Unidos.
Morris comenta ainda que quando a prática era permitida, o acréscimo com vinho do Rhône era de 5 a 10 por cento, geralmente feito nas adegas dos négociants de Bordeaux. Em conversa com Duroux, este disse que recebe o vinho pronto de Syrah em janeiro ou fevereiro após a colheita, valendo-se de diversos fornecedores pequenos, com 50 ou 100 litros cada um. Sua escolha costuma recair sobre o norte do Rhône – Cornas, St-Joseph, Hermitage, Côte-Rôtie – porque os cortes de Châteauneuf-du-Pape são muito encorpados, sem refinamento. Depois, deixa os vinhos de Palmer e do Rhône juntos em barris por sete meses.
Caroline Frey – proprietária do Château La Lagune, um 3ème Cru, e do Domaine Paul Jaboulet Âiné – fez o “Evidence” com a safra de 2010.
Na produção de 10.000 garrafas, usou 50 por cento de vinhos de Bordeaux que iriam para o segundo rótulo do La Lagune, o Moulin de La Lagune, e 50 por cento de vinho de Syrah do Domaine de Thalabert em Crozes-Hermitage, de propriedade do Domaine Paul Jaboulet Âiné.
O corte foi feito nas adegas do Rhône, e cada vinho passou primeiro 12 meses em barril isoladamente e mais 18 meses juntos. O Evidence está sendo vendido a 30 euros cada garrafa.
Michel Rolland e seu irmão Dany também fizeram sua versão de superbordeaux, um blend 50-50 com base no Château Le Bon Pasteur em Pomerol, para um evento de caridade, e venderam tudo.
Países com legislação mais flexível quanto a cortes, como a Austrália, têm produzido vinhos com corte Cabernet Sauvignon e Shiraz há algum tempo. Em 1960, por exemplo, Max Schubert criou o Penfolds Bin 389, chamado por alguns de “Baby Grange”, inspirando muitos produtores do país a seguir a receita.
Se a neo-hermitagização (perdoem-me pelo neologismo) representa apenas uma tendência isolada ou algo que pode ficar – eventualmente, com alguma alteração na legislação sobre as uvas permitidas em Bordeaux – ainda é cedo para dizer. Morris diz que ninguém com quem ele conversou imagina que as regras da AOC serão alteradas. Sabe-se, porém, que assim como os supertoscanos tiveram de ser vendidos como “vino da tavola”, os superbordeaux terão de se contentar com a denominação “vin de table”…